Fuga de capital: acabar com a pilhagem da África para evitar uma explosão social

Léonce Ndikumana e James K. Boyce

Alfa, beta, gama, delta, omicron... Quantas mais letras do alfabeto grego, simbolizando as variantes do Covid-19, o mundo vai ter que aguentar? Enquanto no final do ano passado a África Austral foi mais uma vez vítima de um fechamento de fronteira – tão desnecessário quanto injusto- um punhado de países ricos continua a se opor à exigência de suspensão das patentes de vacinas e tratamentos para o vírus. É claro que este egoísmo vacinal está causando tragédias nos países pobres, mas também está voltando como um bumerangue para os mais ricos, com novas ondas do vírus se tornando muito mais contagiosas e resistentes.

Este cinismo e cegueira também são refletidos pelos fluxos financeiros entre o Norte e o Sul. No papel, os países ricos multiplicam a ajuda ao desenvolvimento e os investimentos diretos na África. Na realidade, eles fecham os olhos para um sistema internacional que saqueia sistematicamente o continente em benefício de uma elite e de grandes corporações. Nas últimas cinco décadas, a África subsaariana perdeu mais de 2 trilhões de dólares para a fuga de capitais. A hemorragia se acelerou desde a virada do século, atingindo em média 65 bilhões de dólares por ano, uma soma que excede os influxos anuais de ajuda oficial ao desenvolvimento.

No mundo imaginário de uma economia de mercado perfeita, os recursos naturais seriam uma bênção. O capital fluiria para os países onde é mais escasso. O povo angolano aproveitaria dos lucros da extração de petróleo; os marfinenses prosperariam como o maior exportador de cacau do mundo (45% da produção global); e os sul-africanos colheriam os frutos da abundância mineral.

Não é bem assim.  Os recursos naturais são, ao invés disso, um campo de caça para a rápida extração de riqueza e acumulação offshore. Os fluxos de capital transfronteiriços são impulsionados não pela escassez relativa na África, mas pelo relativo sigilo disponível em paraísos fiscais. Empréstimos estrangeiros são frequentemente dilapidados, quando eles não evaporarem no ar. No escândalo da “dívida oculta” em Moçambique, por exemplo, um empréstimo de US$2 bilhões (equivalente a 12% do PIB) que foi estruturado por funcionários do governo, banqueiros europeus e empresários do Oriente Médio nunca chegou ao país, mas deve ser reembolsado, com juros.

Em Angola, a extração de petróleo tem servido apenas para enriquecer a elite e as companhias petrolíferas multinacionais. De 1986 a 2018, o país perdeu US$103 bilhões por meio da fuga de capitais, uma soma que equivale ao PIB do país em 2018. Entretanto, apenas 7% dos angolanos rurais têm acesso à eletricidade e quase metade da população não tem acesso a serviços básicos de água potável e saneamento.

A maioria dos produtores de cacau da Costa do Marfim vive abaixo da linha de pobreza, enquanto a fuga de capitais foi estimada em 55 bilhões de dólares entre 1970 e 2018. No mesmo período, cerca de 329 bilhões de dólares desapareceram na África do Sul. O subfaturamento sistemático das exportações de minerais foi responsável por grande parte do fraco desempenho em termos de crescimento, economia, investimento doméstico e redução da pobreza naquele que é chamado de o “país mais desigual do mundo”.

Nós revelamos estes valores em nosso último livro, On the Trail of Capital Flight from Africa: The Takers and the Enablers, a ser publicado pela Oxford University Press no final de janeiro de 2022, apresentando  três exemplos: Angola, Costa do Marfim e África do Sul, países ricos em recursos naturais, mas com resultados de desenvolvimento decepcionantes. Além dos números, nós mostramos como as elites nacionais são auxiliadas e incentivadas por bancos externos, contadores e empresas de consultoria para orquestrar a fuga de capital dos países africanos. A política da “maldição dos recursos” mina o contrato fiscal entre o Estado e o povo. Quando o Estado obtém a maior parte de sua receita de monopólios para-estatais, complementada por empréstimos externos, seus principais beneficiários se tornam seus colaboradores estrangeiros ao invés de seus próprios cidadãos.

São necessários esforços regionais e globais coordenados para combater a fuga de capitais, a corrupção e a evasão fiscal corporativa. O corajoso trabalho do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos e de outras organizações tem lançado luz sobre as redes subterrâneas de especuladores e incentivadores. Ainda há muito a ser feito e a ambição não está à altura da necessidade, como demonstrado pela adoção de um acordo fiscal global em outubro passado, imposto pelos países ricos. Sua principal medida - um imposto corporativo global de apenas 15% - mostra que as capitais do Norte continuam mais sensíveis à retórica das multinacionais do que às necessidades dos países em desenvolvimento.

A Comissão Independente pela Reforma da Taxação Corporativa Internacional (ICRICT), da qual sou membro junto com economistas como Thomas Piketty, Gabriel Zucman, José Antonio Ocampo e Jayati Ghosh, defendeu uma taxa de 25%, que recuperaria a maior parte dos US$240 bilhões perdidos a cada ano para o que é modestamente chamado de otimização fiscal. Ao invés disso, uma taxa de 15% não geraria mais do que US$ 150 bilhões em recursos adicionais por ano, sendo a maior parte deles capturada pelos países ricos.

Como com a vacina Covid-19, este é um cálculo de muito curto prazo. Somente a solidariedade da vacina irá parar as variantes que, de outra forma, prolongarão esta pandemia indefinidamente. E só acabando realmente com a pilhagem dos recursos do Sul é que permitiremos que os países se desenvolvam e evitem a explosão social e as migrações forçadas. É também a única maneira de permitir que eles enfrentem a emergência climática, com consequências positivas para todos.

 

James K. Boyce é Professor Emérito e membro sênior do Political Economy Research Institute da Universidade de Massachusetts Amherst.

Léonce Ndikumana é Professor de Economia e Diretor do Programa de Política de Desenvolvimento Africano no Instituto de Pesquisa Econômica da Universidade de Massachusetts. Ele é membro da Comissão Independente pela Reforma da Taxação Corporativa Internacional (ICRICT).

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